Em meio à selva de pedra da maior metrópole da América Latina, São Paulo, o arquiteto e designer Marcelo Bicudo preserva uma vida que reflete o trabalho iniciado na FAUUSP há quase 40 anos. Entre produções que insurgiam de um mundo cada vez mais poluído, escreveu – entre outros compêndios acadêmicos sobre o tema – o guia Sociedades Sustentáveis (Scipione, 1994), em colaboração com a professora Maria Elisa Marcondes Helene. Intensificando sua produção no design de produtos na última década, lançou parcerias com Wallpaper*, Empório Beraldin, Uniflex, Dona Flor, Cia das Fibras e Butzke, com peças apresentadas na DW!, IED – Istituto Europeo di Design – do qual é consultor –, Mostra Apex: Brazil Essentially Diverse, Museo Della Permanente, BDA e Salão Design. Este último lhe rendeu o Prêmio Madeiras Alternativas 2020, pelo design do banco Íris, Butzke; em 2016, recebeu bronze no Prêmio Internacional Design Objeto: Brasil, pelo pendente Vellum. Mas entre todos os feitos em arquitetura e design, nada é tão entusiástico para o profissional quanto o seu projeto pessoal, Reserva Atibaia, uma construção que engloba arquitetura, design de interiores, paisagismo e preservação do meio ambiente, em meio a 42 mil m² de mata atlântica, um cenário inspirador que, para além da natureza, descortina a trajetória profissional de Bicudo
REVISTA DECOR – Sua carreira no design iniciou na FAUUSP nos anos 1980, e muitas tendências surgiram e passaram desde então. O que você preserva deste primeiro momento?
MARCELO BICUDO – Quando eu iniciei a graduação, em 1985, havia, internacionalmente, muita pesquisa e muito debate sobre o chamado “pós-modernismo”. Para, eventualmente, se concluir que não haveria um, mas muitos (risos)! De qualquer forma, a discussão era muito rica. Enquanto isso, a FAUUSP ainda gravitava quase que exclusivamente em torno de um modernismo “raíz”. Sobretudo aquele ensinado pelos expoentes paulistas, de viés racionalista e, em menor medida, pelos cariocas e outros.
É claro que há muitas explicações para isso. A melhor delas é a alta qualidade que a nossa produção atingiu nas décadas anteriores e que, afinal, deu origem à própria escola. Além, naturalmente, de todas as condicionantes sociais, políticas e culturais do Brasil à época. Mas pesou também algum isolamento e – ouso dizer – alguma acomodação: muita reprodução técnica e formal, com atenção insuficiente para os anseios individuais e para aspectos de cunho antropológico e ambiental.
O fato é que, como aluno, eu sentia o ambiente da FAU um pouco dogmático. E confesso que isso foi um pouco decepcionante para mim. Difícil num primeiro momento, este incômodo, afinal, me levou a um olhar mais “orgânico” da profissão: mais ligado à experiência coletiva de interação com o meio, processos e materiais. Temas como o urbanismo em grandes metrópoles, o paisagismo sagrado chinês e a arquitetura em terra crua nutriam o meu imaginário de primeiranista e permanecem até hoje.
DECOR – Em que momento você passou a pautar a sustentabilidade em seus projetos?
BICUDO – Já a partir do segundo semestre na FAU, eu estagiei no Projeto Favela, iniciativa de urbanização da comunidade São Remo, empreendida pela Prefeitura da Cidade Universitária. Idealizado a partir de um projeto experimental de arquitetura em terra crua, sob a coordenação do arquiteto Marcio Mazza, e envolvendo a prensagem manual de tijolos de solo-carbureto em regime de mutirão, a iniciativa recebeu “menção honrosa” na premiação anual do IAB – Instituto de Arquitetos do Brasil. E significou, também, o meu primeiro contato com o aproveitamento de resíduos no âmbito do design: a mistura do carbureto à terra crua, nas proporções adequadas, proporcionava um nível ótimo de impermeabilização aos tijolos.
Entre dezembro de 1986 e janeiro de 1987 eu participei do Programa da UNESCO Homem e Biosfera, na pesquisa “Avaliação de impacto ambiental de projetos e implantações de conjuntos habitacionais em meio urbano. O ecossistema urbano e o problema projetual: novos parâmetros. Estudo de caso: São Miguel Paulista”. A experiência me serviu de contato com as ferramentas do planejamento, aplicadas à escala metropolitana.
Ainda durante a graduação, em 1989, participei do Curso de Difusão Cultural “Ecologia e Manejo Sócio-econômico de Ecossistemas Estuarinos, ministrado pela professora Yara Schaeffer Novelli, do Departamento de Oceanografia Biológica do Instituto Oceanográfico da USP. Embora rápida, foi uma experiência rica, interdisciplinar, que me aproximou do campo da Biologia e do meio ambiente natural.
Já como aluno especial da pós-graduação, frequentei na FEA USP o grupo de estudos do Programa de Áreas Úmidas do Brasil, que olhava para o meio ambiente do ponto de vista das Ciências Sociais. Foi onde tomei contato com a obra dos professores Henrique Rattner e Antonio Carlos Diegues. E foi também onde conheci a professora Maria Elisa Marcondes Helene, com quem trabalhei no Núcleo de Apoio à Pesquisa em Economia, Sociedade e Meio Ambiente, na organização e sistematização de um material produzido por diversos autores ligados à Universidade de Waterloo, no Canadá, sobre o planejamento de uma sociedade sustentável naquele país.Tendo a professora como co-autora, redigimos e publicamos em 1994 pela Editora Scipione um livro paradidático intitulado “Sociedades Sustentáveis”, como parte de uma série. Nosso livro incorporava e adaptava para alunos secundaristas uma abordagem mais social e abrangente da sustentabilidade, própria do modelo canadense em estudo. Tal abordagem, já no início dos anos 1990, se distanciava da ótica estrita do “Desenvolvimento Sustentável”, grande paradigma à época, e que serviu de tema para a conferência internacional Eco-92, realizada na cidade do Rio de Janeiro, e de seus anais, a Agenda 21.